Eu descia a calçada toda iluminada. Iluminada eu, não a rua. Eu cintilante como uma estrela, a maquilhagem fazendo-me afogueada e os collants cheios de brilho. Descia e levava o meu coração na mão, suspenso, porque ele tinha sofrido uma paragem cardíaca. Meu coração imóvel deixando um rasto de sangue na rua que eu não podia apagar. As pessoas todas viam o coração desmaiado e o sangue e percebiam que eu estava apaixonada. Por isso o meu coração não batia. Ele jazia exangue e imóvel fora de mim. Não era mais meu, saltara do peito e se acomodava no exterior do meu corpo. Eu descia a calçada toda iluminada e ao fundo avistei o homem a quem eu devia entregar o meu coração, para que continuasse a viver. No escuro da noite que a minha presença não aclarava, eu vi que ele se encolhia. Lá ao longe, hirto na praça, ele fazia-se pequeno. Porquê? perguntava eu, assustada. E o espanto vinha do facto de já saber a resposta. Eu, tão alta com os meus sapatos de tacão, cintilava como um astro menor que tem ambições de grandeza. Ele era um vulto escuro e pesaroso, um asteróide perdido, fugindo da sua rota. Não vinha para arrecadar o meu coração. Ele chegara, bem-educado, para dizer que afinal não podia recebê-lo.
* (texto de ficção não publicável, que estava na minha gaveta)
* (texto de ficção não publicável, que estava na minha gaveta)